Uma guerra urbana

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Mara Rovida*

Mara Rovida é jornalista, doutoranda no PPGCOM da ECA-USP e membro do Grupo de Pesquisa do CNPQ Comunicação e Sociedade do Espetáculo

Mara Rovida é jornalista, doutoranda no PPGCOM da ECA-USP e membro do Grupo de Pesquisa do CNPQ Comunicação e Sociedade do Espetáculo

Quem trabalha com transporte de mercadorias e passageiros, quem presta serviços in loco, quem cobre o tema, quem trabalha diretamente nas ruas e avenidas da urbes entende bem a comparação. O trânsito brasileiro se tornou uma espécie de guerra e ir pra rua pode ter significado semelhante a seguir para o front.

As discussões a respeito dos índices de mortalidade no trânsito se concentram em dois aspectos fundamentais desse cenário macabro, a imprudência das pessoas e a má-formação de condutores, ciclistas e pedestres. Essa dupla tem certamente seu peso nos resultados e precisa, obviamente, ser levada em consideração. Mas, é um erro resumir o problema a esses dois aspectos, apesar de sua relevância.

Falhas na sinalização, má conservação das vias públicas, demora no socorro de vítimas, entre outras situações contribuem de forma robusta para a manutenção das estatísticas assombrosas. Como exemplo, podemos usar a vítima mais corriqueira, que continua sendo o motociclista. Engana-se quem acredita que isso se deva estritamente aos malabarismos e loucuras praticadas sobre duas rodas. Muitos acidentes com motos são provocados por terceiros (outros condutores, pedestres, ciclistas e também por obstáculos nas vias). Na última divulgação do Datasus, que se refere às ocorrências registradas em 2012, dos 7.849 casos de mortes de motociclistas, 2.763 foram provocados pelo próprio motociclista, o restante teve interferência de terceiros.

Os números do Datasus são baseados nos óbitos registrados pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Esses números não compreendem a totalidade dos casos porque muitas vítimas não chegam a ser socorridas. Assim, mesmo que assustador, o número oficial – de 46 mil mortes em 2012 – ainda é menor do que o montante real de vidas ceifadas diariamente nas ruas e avenidas das cidades brasileiras.

 

Detalhes dessas estatísticas podem ser consultados no documento Mapa da Violência, assinado pelo pesquisador Julio Jacobo Waiselfisz:

http://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2012/mapa2012_transito.pdf

 

* Mara Rovida é jornalista, doutoranda no PPGCOM da ECA-USP e membro do Grupo de Pesquisa do CNPQ Comunicação e Sociedade do Espetáculo.

A mais odiada (e amada) de Sampa

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Mara Rovida*

Mara Rovida é jornalista, doutoranda no PPGCOM da ECA-USP e membro do Grupo de Pesquisa do CNPQ Comunicação e Sociedade do Espetáculo

Mara Rovida é jornalista, doutoranda no PPGCOM da ECA-USP e membro do Grupo de Pesquisa do CNPQ Comunicação e Sociedade do Espetáculo

Não tenho puderes em reconhecer-me no topo; sou a mais comentada, a mais famosa; sou um símbolo, mais do que isso, sou necessária.

Por minhas veias, corre um líquido escuro e fétido. Minhas extensões estão sempre tomadas por gente de todo tipo. Há quem aproveite para fazer comércio nos momentos em que fervo, em que saio da normalidade, em que enlouqueço.

Os pássaros que cantam para mim são negros e largos, têm asas potentes e garras afiadas; seu voo sempre acaba em minhas margens, onde pousam pesadamente sua corpulência tétrica. Ao lado de grandes roedores dispersos, essas aves criam um cenário de presságios, de mau agouro.

Sobre minha pele, derrama-se suor e sangue. Vidas se perdem e se esfacelam diariamente. Não há quem me bata nos índices macabros em toda a cidade. Mesmo com medo, não me deixam, não conseguem me substituir, me buscam desesperadamente em seus aparelhos e mapas coloridos. Quando perdidos na imensidão de concreto, o alívio é instantâneo ao me alcançar.

Disputam cada centímetro de meus braços e sou visitada o dia todo, sem tréguas, sem feriados, sem folgas. Já me esticaram por todos os lados na tentativa de aumentar minha capacidade de absorção. Mas, a demanda é tanta que nenhuma intervenção cirúrgica, mesmo operada pelos mais destros engenheiros, pode resolver. Assim, faço cada visitante penar da entrada à saída; faço com que se desloquem vagarosamente em boa parte do tempo; faço com que cada visita seja ainda mais insuportável. Gargalho estrondosamente de seu sofrimento, com a certeza de que no dia seguinte todos, sem exceção, me visitarão novamente.

Sou rainha e exijo sacrifícios. Sou, por tudo isso, aclamada, amada, odiada e marginalizada. Insubstituível guardiã dos principais portais dessa urbes, meu nome traz a vítima que sufoco um pouco mais a cada dia, o rio que insiste em correr por minhas entranhas abertas, o Tietê.

* Mara Rovida é jornalista, doutoranda no PPGCOM da ECA-USP e membro do Grupo de Pesquisa do CNPQ Comunicação e Sociedade do Espetáculo.

Imagem de Alex N

http://www.nundafoto.net/gallery/photo/1438-urubu-noir-coragyps-atratus