No metrô, o corpo segue sem alma

Mara Rovida*

Mara Rovida é jornalista, doutoranda no PPGCOM da ECA-USP e membro do Grupo de Pesquisa do CNPQ Comunicação e Sociedade do Espetáculo

Mara Rovida é jornalista, doutoranda no PPGCOM da ECA-USP e membro do Grupo de Pesquisa do CNPQ Comunicação e Sociedade do Espetáculo

A têmpora brilhosa denuncia a umidade que brota aqui e acolá. Entre a nuca e o coque improvisado, os cabelos se fazem como recém-lavados e evidenciam a caloria de um verão sem precedentes. Sob os pés, as calçadas parecem desintegrar e deixam escapar um vapor de caldeira que aumenta as umidades do corpo, já colado à roupa de um dia inteiro de trabalho.

Em meio a gentes de todas as cores e aromas, sigo para as entranhas da cidade ardente, para o buraco de tatu gigantesco que engole milhares de passantes a todo instante.

Já na boca da entrada, vou me integrando à massa de pessoas que vagarosamente se movimenta em direção às catracas. O corpo responde ao estímulo do ambiente e parece diminuir os ritmos cardíacos. Sinto tonturas leves. Mais dois andares para baixo e estarei no centro da terra em brasa.

Os trens chegam e saem abarrotados e a plataforma se transforma em máquina de compactar gente. Quanto mais próxima do trem, menos sou eu mesma e mais sou parte de um grande organismo biológico disforme. Dentro da composição que percorre a cidade pelos subsolos, me vejo num estado de letargia temporária. Meu corpo segue guiado por um cérebro que não me pertence. Minha alma se afasta para tornar suportável a experiência dantesca de todo dia.

Tenho a sensação de que algo está fora do normal. Estamos parados na escuridão do túnel. Cada minuto se alarga em incontáveis eras e nos desintegramos em partículas de suor e vapores que não encontram saída. Sobre nossas cabeças, uma espécie de goteira vai se formando. Os corpos que buscam se resfriar a todo custo transformam o trem num ambiente úmido e insalubre. Alguém perde os sentidos e precisa de amparo alheio. Mãos sem donos e corpos sem alma parecem automaticamente animados num movimento de socorro.

Nas trevas do túnel, temos certeza da morte certa. Agora, a ilusão de pessoas caminhando do lado de fora é tão forte que os olhos incrédulos se esforçam por afastar o delírio persistente. Alguém aciona a abertura de segurança e o ar quente, lentamente, volta a circular. Uma multidão já toma conta dos trilhos e só agora percebo que foi eu quem perdeu os sentidos e precisou de amparo.

Seguimos na escuridão entrecortada por luzes verdes e vermelhas. Demoramos a vislumbrar a claridade da estação mais próxima. Quando chegamos, somos acolhidos por uma turba enfurecida. Não sei bem o que se passava, mas percebo ter voltado para o mesmo lugar de partida. Devolvem nossos bilhetes e mandam buscar outra maneira de voltar para casa.

Três ônibus, em duas horas e meia, e eu finalmente chego ao meu destino. A roupa completamente encharcada, os sentidos falhos e a alma ainda um tanto alheia sintetizam-se num corpo dolorido. Ao pisar à sala de casa, consigo ouvir o final do jornal na TV. A notícia fica no ar, só sei que era alguma coisa sobre vândalos no metrô de São Paulo…

* Mara Rovida é jornalista, doutoranda no PPGCOM da ECA-USP e membro do Grupo de Pesquisa do CNPQ Comunicação e Sociedade do Espetáculo.