Quando a gentileza assume a direção

Mara Rovida*

 

Mara Rovida é jornalista, doutoranda no PPGCOM da ECA-USP e membro do Grupo de Pesquisa do CNPQ Comunicação e Sociedade do Espetáculo

Mara Rovida é jornalista, doutoranda no PPGCOM da ECA-USP e membro do Grupo de Pesquisa do CNPQ Comunicação e Sociedade do Espetáculo

Não estava com pressa e nem poderia estar num dia como esse. Choveu forte durante a madrugada e a garoa caprichada mantinha as pistas molhadas e os para-brisas embaçados.

 

Esse é o típico dia de trânsito caótico. Semáforos param de funcionar – desconfio que substituem os componentes de metal por açúcar nesses equipamentos –, pequenos acidentes deixam pistas bloqueadas, pontos de alagamento dificultam o fluxo de veículos e por ai vai. Mas, um fresta de esperança pode surgir num cruzamento qualquer e o dia fica menos cinza, com toda certeza.

 

Passava por uma rua de pouco movimento, mas com um cruzamento daqueles bem chatinhos, onde fica difícil atravessar pela falta de visibilidade. Vários carros vinham no sentido contrário ao meu, quando um deles parou e sinalizou com o farol alto, como quem diz “pode seguir, eu espero, também estou sem pressa”. Pensei, “meu dia de sorte”. Isso é tão raro que a gente fica até sorrindo a toa.

 

Continuo meu caminho e viro a direita e a direita de novo. Entro numa rua estreita com carros estacionados dos dois lados. Impossível passar um veículo grande, mal tem espaço para um carro pequeno. Mas, é mão dupla e na outra direção vinha alguém. Penso, “agora vou ter de dar ré, na esquina mesmo”. Então, a magia da gentileza se repete, o farol alto indica mais uma vez “ei, pode passar, eu espero”. Como assim? Duas gentilezas dessas em menos de 200 metros?

 

Pois é, fico feliz que vez ou outra a solidariedade, a gentileza e a boa educação tomam conta daquela peça atrás do volante. Num espaço público marcado pela disputa e pelo conflito, quando algo assim acontece temos de comemorar!!!

 

* Mara Rovida é jornalista, doutoranda no PPGCOM da ECA-USP e membro do Grupo de Pesquisa do CNPQ Comunicação e Sociedade do Espetáculo.

No subsolo do trânsito paulistano

Mara Rovida* 

Mara Rovida é jornalista, doutoranda no PPGCOM da ECA-USP e membro do Grupo de Pesquisa do CNPQ Comunicação e Sociedade do Espetáculo

Mara Rovida é jornalista, doutoranda no PPGCOM da ECA-USP e membro do Grupo de Pesquisa do CNPQ Comunicação e Sociedade do Espetáculo

O sinal de abertura das portas soa. As pessoas descem, sempre apressadas, e seguem para as escadas que dão acesso a saída da estação. Os que vão embarcar permanecem ao lado da porta e na primeira oportunidade pulam para dentro do vagão do metrô. Estamos na “estação terminal Tucuruvi”, como indica pelo autofalante aquela voz vinda do além.

O destino final do trem é a estação Jabaquara, essa é a linha azul que liga o norte ao sul da cidade (ao menos uma parte dessas áreas). Eu devo descer no Paraíso, estação que liga a linha azul à verde. Vou para a avenida Paulista e por isso tenho de pegar a outra linha. Se não tiver nenhum problema, chego em 25 minutos ou um pouquinho mais, nada muito garantido.

Durante a viagem fico com sono, por isso, deixo de lado o texto da aula de hoje. Mas, então, o sono passa e começo a prestar atenção numa conversa ali do lado. Uma moça, bem arrumada, fala com um rapaz metido numa calça social meio larga, uma camisa azul e uma gravata escura um tanto torta. A moça está com uma calça bem justa e um salto alto surrado – deve andar bastante –, está bem maquiada e fala sem parar, mexendo as pulseiras de metal e o relógio branco gigante atados ao braço que se mostra pela camisa meia manga. Os dois discutem as mudanças do Código Civil e falam em provas. Um sorriso surge, com certeza, no canto da minha boca: “são estagiários de direito”, penso imediatamente. Espero mais um pouco para ter certeza e…..lá está a identificação positiva: descem na Praça da Sé. O que tem demais nisso? Ali, no entorno daquela estação, está o Fórum João Mendes e vemos advogados e estagiários andando por aquelas bandas ao longo do dia. Como sei que são estagiários? Sapatos surrados, discussão sobre detalhes do Código Civil em vez de sapatos bem cuidados e debate sobre ações e clientes.

Gosto de matar o tempo durante as viagens de metrô brincando de adivinhar o que as pessoas fazem, quem são elas e para onde vão. Com o tempo, a gente fica “craque” nisso e alguns “personagens” de tão característicos nem graça tem adivinhar porque é fácil saber o que são. Os atendentes de telemarketing, por exemplo, andam em grupos e, em geral, transitam pela região da Avenida Paulista. Eles ficam tão “impregnados” daquelas fórmulas de atendimento depois de uma jornada de trabalho que acabam falando entre eles mais ou menos daquele mesmo jeitinho que tratam os “clientes” do ‘call center’. Além disso, eles adoram contar uns para os outros histórias engraçadas e estressantes do dia de trabalho e sempre reproduzem o que falaram, como falaram e o que ouviram durante as conversas. É fácil reconhecer esse pessoal.

No metrô também tem muita gente simples que trabalha com serviço braçal, empregadas domésticas, faxineiras e gente que fica o dia todo numa mesinha fazendo serviço burocrático. Tem aqueles que carregam marmita naquelas bolsinhas compridas e estreitas e aqueles que levam o material da escola ou da faculdade e, saindo do trabalho, vão para mais uma jornada, a dos estudos. Gente que surge de todas as entradas do vagão, alguns falando alto, outros dormindo em pé….engraçado, todos parecidos, mas bem diferentes. Eles vão e vem e eu cheguei na minha estação, Brigadeiro. A moça ali do lado vai descer mais adiante, nas Clínicas, está com calça e sapatos brancos, deve trabalhar em alguma unidade do Hospital das Clínicas. Pelo jeito é enfermeira, porque se fosse médica….

 

* Mara Rovida é jornalista, doutoranda no PPGCOM da ECA-USP e membro do Grupo de Pesquisa do CNPQ Comunicação e Sociedade do Espetáculo.

Micronarrativas de espera

Mara Rovida*

Mara Rovida é jornalista, doutoranda no PPGCOM da ECA-USP e membro do Grupo de Pesquisa do CNPQ Comunicação e Sociedade do Espetáculo

Mara Rovida é jornalista, doutoranda no PPGCOM da ECA-USP e membro do Grupo de Pesquisa do CNPQ Comunicação e Sociedade do Espetáculo

A distância não era longa, mas não sabia quanto tempo demoraria para chegar. Achei que seria mais fácil do que na semana passada, afinal a faixa exclusiva para ônibus começou a funcionar na segunda-feira. E lá estava ela, livre para os coletivos, sem carros, sem motos, sem ninguém.
Chego no ponto e espero. Olho no horizonte e nem sinal do ônibus. Olho em volta, uma garota mestiça se distrai ao celular e parece gostar do que vê naquela telinha minúscula. Dedos ágeis num teclado sem teclas, corpo levemente curvado e apoiado na estrutura metálica imunda que “nos protege” enquanto aguardamos. Mais atrás, sentado sobre o que deveria ser o encosto do banco, um homem lia um clássico. Não consegui ver o título, apenas o nome do autor em letras douradas na lombada da capa, Balzac. O rapaz deveria ter uns 35 anos, cabelo bagunçado, calça jeans um tanto surrada e portava uma bolsa estilo carteiro. Não sei porque, mas achei que fosse professor…..e o ônibus não vinha.
Passada a curiosidade sobre os dois companheiros de espera, vejo que ao lado da faixa exclusiva, os carros se amontoam e vagarosamente se deslocam. Os motoristas olham com cobiça para a pista livre e nada do ônibus. Começo a me preocupar com o horário. Foi então que eu vi, fixado no muro ali atrás, um papel amarelo. Era uma folha de sulfite comum. Chego mais perto. Apenas um parágrafo. Não se trata de propaganda, é apenas um parágrafo:
“Reduzido a sujeito indeterminado de frase afirmativa com sentido negativo, ele soube, não era amado. O que queria? A música do poetinha. Mas, teve de se contentar com o hit de sucesso da Blitz.”
Já tinha ouvido falar dessas micronarrativas espalhadas pela cidade. Já tinha até me deparado com uma ou outra. Mas, essa era instigante. O que teria acontecido? O cara ouviu sua amada se referir a ele como um sujeito qualquer? Teria ele ouvido o que não deveria? E depois, o que ele fez? Seria aquela uma versão contemporânea de um romance balzaquiano? Agora os homens de trinta sofrem o que o autor francês contou sobre as mulheres de sua época? Seria o professor ali sentado o autor daquele parágrafo?
Não tive como evitar. Olhei fixamente para o cartaz e depois para os dois companheiros de espera e….nada! Nenhuma reação. Não pareciam se importar com meu interesse naquela folha amarela. Olhei em volta e tudo parecia como antes, os carros se arrastando e a faixa exclusiva vazia. Quem teria escrito aquilo?
Talvez não importasse muito a autoria do texto. O que eu queria mesmo era achar um arranjo para aquela ideia incompleta. Me incomodava aquele pedaço de história, sem começo certo e com desfecho incompleto. Mergulhei num turbilhão de pensamentos e me distrai por alguns minutos, quando percebi um movimento entre os que dividiam o ponto comigo….o ônibus. Subimos no coletivo e quando o motorista arrancou ainda olhei mais uma vez aquela folha amarela. Quem a teria colocado ali?

* Mara Rovida é jornalista, doutoranda no PPGCOM da ECA-USP e membro do Grupo de Pesquisa do CNPQ Comunicação e Sociedade do Espetáculo.